É fácil negar a existência da violência urbana. Desde que seu papel nas operações de combate ao crime seja apenas assinar documentos, dar entrevistas e ler os relatórios num gabinete confortável.
CIA – Central de Informações ANANDA
Ontem, sexta-feira 17 de julho, em Salvador foi realizada mais uma operação de combate ao crime. Dessa vez o Comando de Operações Especiais (COE), foi aos bairros de IAPI e Tancredo Neves, parar cumprir ordens de busca e apreensão, com o intuito de prender integrantes da quadrilha de traficantes de drogas que estariam sendo comandada de dentro do Complexo Penitenciário do Estado.
Esse tipo de operações tem sido cada vez mais freqüentemente noticiadas pela imprensa, a exemplo da iniciada em 10/07 e finalizada em 13/07, quando diversos bairros, entre eles Nordeste de Amaralina, Santa Cruz, Vale das Pedrinhas e Chapada do Rio Vermelho, foram ocupados, numa operação que envolveu 14 viaturas e 60 agentes da Polícia Civil e Militar, visando reprimir o tráfico de drogas na região. Segundo notícia veiculada pelo BA TV, da Rede Bahia, em 11/07, a operação foi finalizada com 5 mortos e 7 feridos. Mês passado uma Operação conjunta das Polícias Civis e Militar com 100 agentes já havia deixado saldo semelhante no bairro de Canabrava. O Jornal Correio da Bahia, fez uma matéria especial sobre esse caso.
A análise cuidadosa dessas intervenções aponta para algumas características importantes da violência recorrente e vivenciada no cotidiano por diversos setores da população na cidade de Salvador, que sofrem com suas conseqüências diretas e indiretas, incluindo aí os próprios policiais. Não se trata aqui de apontar culpados para a violência relacionada com atual mercado de drogas, mantido na ilegalidade. Todos sabemos que a violência no Brasil é exercida por diversas vias. A negligência do Estado na garantia dos Direitos Fundamentais aos cidadãos brasileiros, somada às imensas desigualdades sociais, econômicas e políticas podem ser apontadas como as principais causadoras das maiores violências cometidas contra os brasileiros e brasileiras. Na nossa análise, o tráfico de drogas atua dentro desse sistema tornando algumas das suas características não só mais graves como mais explícitas e é isso que o torna tão incomodo e indigesto. É isso que faz das categorias “tráfico de drogas” e “violência policial”, que são social, cultural e politicamente forjadas na nossa sociedade atual como bodes muito acessíveis para explicar e justificar todas as violências que são exercidas por muitos outros motivos. Porém, além das violências exercidas em nome da manutenção de um sistema, existem ainda as exercidas em nome da expiação dos bodes.
Saldo da “Guerra às Drogas” – 139 mortos e dezenas de feridos
Nesse processo, chama atenção o grande número de pessoas mortas pela polícia durante as ações realizadas em decorrência do que é denominado de “auto de resistência a prisão”. Há poucos dias, na edição de 11/07/09, o Jornal A Tarde, divulgou números dessas ocorrências, ressaltando que os números são fruto de um banco de dados formado por iniciativa do próprio jornal, uma vez que o órgão da Secretaria de Segurança Pública, o CEDEP, responsável pela divulgação de informações ainda não o tinha feito. De acordo com esses dados, de janeiro até 10/07/2009, 134 pessoas foram mortas pela polícia durante ações, e somente de 1 a 10 de julho 14 suspeitos foram mortos em “autos de resistência”.
Para Tânia Cordeiro, do Fórum Comunitário de combate à violência (FCCV), em entrevista cedida na matéria do Jornal A Tarde, jovens inocentes acabam morrendo, o que mostra características como despreparo da PM e ainda a forte presença do componente ideológico permeando a prática policial. As ações são muitas vezes norteadas pela imagem negativa que se tem sobre as populações da periferia, os “pobres” e sobretudo sobre as populações afrodescendentes, os “pretos”. E deveriam ser essas comunidades a serem ouvidas, segundo Carlos Costa Gomes, coordenador do Observatório de Segurança Pública da Bahia, para que a partir do diálogo delas com os órgãos de segurança, se conheça suas reais necessidades e possa haver redução dos danos da violência.
Policiais – Em contrapartida, de janeiro a junho deste ano, quatro policiais militares, um agente da Polícia Civil e um policial federal foram mortos por bandidos, os dois últimos a serviço da Secretaria de Segurança Pública (SSP) e Polícia Federal, segundo matéria do jornal A Tarde.
Se Liga, Secretário!
Outro ponto que ganha destaque e tem sido alvo das ações policiais é a ocorrência, denunciada pela imprensa de áreas na Região Metropolitana de Salvador onde estariam sendo estabelecidos o “toque de recolher”, imposto por traficantes e milícias. Sobre isso, há apenas uma semana, em 09/07, no telejornal Bom Dia Brasil, da Rede Globo, o Senhor César Nunes, Secretário de Segurança Pública da Bahia, deu declarações que merecem evidência uma vez que mostram a postura Oficial do Estado sobre tais questões. Ele comentou a matéria veiculada pelo Jornal nacional, também da Rede Globo, que havia sido transmitida na noite anterior 08/07, na qual foram mostradas declarações de um morador de Salvador, que denunciou a situação de violência vivenciada em um bairro, onde os moradores estariam vivendo sob “toque de recolher” e pelo terror imposto por “traficantes de drogas”.
O Sr. César nunes rebateu esta informação veementemente, declarando que “em nenhum bairro, rua ou viela de Salvador há toque de recolher”. Questionado pelo repórter sobre o teor da matéria e as declarações dadas nelas, classificou as informações do morador na matéria como “fantasiosas”. Disse também que diante de denúncias sobre esse tipo de ocorrência providenciaria uma visita aos bairros ou ainda outras cidades da Bahia para comprovar se há mesmo o referido toque de recolher. Ainda sobre o tema, atribuiu o aumento do tráfico ao afrouxamento da repressão e ao fato de que essa prática tem aumentado em todo o mundo. Porém, mesmo diante desse aumento, na Bahia, segundo ele, houve redução de 11% nos índices de homicídios e a violência estaria em “curva descendente”, o que fazia com que a Bahia não perdesse suas qualidades de local “seguro” pra o turismo.
Logo após essas declarações, foi ouvido pelos repórteres o Prof. Carlos Costa, do Observatório de Segurança Pública que, tendo um tempo muito mais reduzido para falar que o dado ao Secretário, resumiu sua declaração afirmando que, assim como em outras cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, a violência não se manifesta ou é vivenciada de forma uniforme em todos os bairros ou regiões da cidade, e tem múltiplas facetas, não sendo, portanto, exagero falar que em bairros de Salvador, atualmente, setores da população vivenciem sim contextos de grande violência e criminalidade.
Ora, é muito fácil afirmar que não há grande violência em Salvador quando nas Operações Policiais práticas, não é o Senhor Secretário que precisa ir de beco em beco, de rua em rua, de viela em viela, arriscando-se a levar um tiro e não voltar pra casa no fim do trabalho, ou a acertar um tiro em alguém que de fato não estava envolvido em situação de resistência e se transformar em mais um dos muitos bodes expiatórios desse sistema falido. Duvido muito que os milhares de policiais civis e militares que precisam arriscar suas vidas no cotidiano do trabalho concordem com as afirmações do Senhor César Nunes. Para eles, não é nada fantasiosa a violência urbana na capital da Bahia e em todo o Estado. Para eles e para toda a sociedade baiana essa violência faz parte do dia a dia e se o Senhor Secretário insistir em afirmar que tudo isso não passa de fantasia, estará afirmando que essas corporações e a maioria da sociedade baiana estão vivendo num delírio coletivo onde estamos nos auto-impondo uma violência que na realidade não existe, só em nossas cabeças. Que, enquanto não saem da ilusão coletiva, ainda aguardam os R$ 101 milhões prometidos para investimento em Segurança Pública.
Não é de agora que vemos nos jornais e nas nossas realidades cotidianas o grau de descaso do Estado para com as diversas áreas públicas para as quais a Constituição o coloca como responsável direto. Educação, Saúde, Segurança, Moradia, Trabalho, Infra-Estrutura, etc… Se há alguma coisa de fantasiosa é a ilusão de que o Estado ou a sociedade estão dando conta de promover a distribuição do acesso à esses Direitos Fundamentais à toda a população brasileira.
Fantasiosa é a idéia de que podemos construir à base da violência um mundo sem drogas e de que a violência e a criminalização são as melhores formas de lidar com os produtores, comerciantes e consumidores de drogas. Fantasiosa é a atitude de querer explicar e resolver todos os problemas sociais elegendo bodes aqui e ali e os sacrificando de forma ritual ou profana que seja. A violência urbana não é causada somente pelos traficantes, policiais, pelos usuários, ou por qualquer outra figura mágica que resolvermos escolher para culpar por tudo.
A violência urbana é causada pelo descaso do Estado e da Sociedade para com a distribuição igualitária do acesso aos Direitos Fundamentais para os cidadãos brasileiros. Não importa quantos paliativos escolhermos, não poderemos resolver nossos problemas sociais negando a existência deles ou esperando melhorias reservando de forma perversa à policia o papel de manter a panela de pressão sob controle.
Colaboraram para esse artigo: Laura Santos e Sergio Vidal.