Das questões gerais sobre economia das drogas
Breve análise do conjunto de notícias sobre plantio de maconha no Brasil, veiculadas pelo boletim virtual Drogas e violência no Campo entre abril de 2005 e maio de 2007. por Jorge Atílio Silva Iulianelli
O Boletim Drogas e Violência no Campo é uma contribuição para o debate nacional sobre a necessidade da reforma das políticas de drogas. Efetivamente, a consideração sobre a natureza proibicionista das atuais políticas e as conseqüências socioambientais que elas produzem, em especial, a violência letal que afeta principalmente às juventudes masculinas, empobrecidas e afrodescendentes, nas zonas rurais e urbanas, nos leva à necessária postura crítica desse fenômeno. Parece muito inconseqüente que após mais de 70 anos da política pública do Estado brasileiro de constante erradicação de áreas de plantio de substâncias qualificadas como ilícitas, e de repressão à comercialização e ao consumo dessas substâncias, não se verifique que tal política é minimamente ineficaz. O abarrotamento do sistema penal com processos, apenações e detenções de pessoas identificadas como participantes dessa cadeia produtiva indica claramente que é ineficaz a atual ordem jurídica e penal que orienta a ação pública do Estado em relação a esse fenômeno.
O debate público sobre o tema, no entanto, enfrenta tabus de diversas naturezas. Primeiramente, temos o tabu religioso que identifica à condição de pecado o uso de substâncias qualificadas como ilícitas. Com efeito, a noção básica de vício é fruto da cosmovisão ocidental judaico-cristã. E para essa cosmovisão o uso de substâncias que afetam o organismo humano de forma perniciosa deve ser interrompido. Isso nos levaria a uma ampla discussão, também teológica, sobre o paralelismo entre controle do prazer e elegia ao prazer. Há uma vertente teológica judaicocristã que abomina o prazer corporal como elemento antisalvífico. Na tradição cristã isso nos remete a uma determinada interpretação agostiniana da corporeidade. Essa reflexão nos levaria muito longe para os propósitos dessas linhas. Note-se tão somente que essa não é a única orientação possível. Há, também, pelo menos, uma linha franciscana mais epicurista que estóica. Existem muitas outras variações, algumas consideradas heréticas pelo aparato eclesiástico hegemônico, como Joaquim de Fiori e sua reflexão medieval.
Um outro tabu é de ordem sanitária. Conquanto as sociedades ocidentais tenham criado mecanismos de tolerância ao uso de substâncias psicotrópicas recreativas, como o álcool em suas diversas variedades, e farmacológicas, como diversas outras substâncias; algumas substâncias, por seu efeito para a saúde humana foram analisadas como perigosas para a circulação e consumo. Isso levou a construção de uma lista, controlada internacionalmente, para que essa proibição prevalecesse. Ora, o controle sanitário pela via proibicionista, ao que parece, não tem sido a melhor solução. Se há algum tipo de controle para os possíveis efeitos à saúde que a proibição gera, há um efeito de mortalidade por causas externas, especialmente por armas de fogo que defendem a circulação dessa cadeia econômica, que é um fenômeno de saúde pública mais grave que aquele que se pretende preservar.
Poderíamos seguir elencando tabus: religiosos, políticos, sanitários, econômicos, etc. Isso merece nossa atenção e precisa ser compreendido profundamente, tanto se quisermos interromper a lógica da violência, que persiste nessa economia das drogas; como se quisermos fazer avançar uma política de drogas humanitária e justa. O fato é que o Estado democrático de direito não poderá conviver muito mais tempo com uma política de drogas que penaliza o conjunto da sociedade pelos efeitos de expansão de redes criminosas, de violência letal, e de uma economia submersa que alimenta, em diversas frentes, a economia legal. Não há economia das drogas ilícitas sem economia do tráfico de armas leves, sem economia da corrupção dos aparelhos de repressão do Estado e sem a criação de diversas formas subterrâneas e ilegais de entrada de recursos na máquina social – até mesmo com a participação de membros do legislativo e do judiciário nesses circuitos. Fica assim um círculo vicioso ininterrupto que afeta a todos os países, indiscriminadamente, porque se trata de uma forte ação econômica internacional.
Não nos interessa, no momento, perseguir aquela linha de raciocínio que já nos vai levando longe de nosso propósito básico com esse texto. Há uma série de fatores que permitem compreender como a economia do plantio da maconha, no Brasil, se insere nesse processo. A primeira década do século XXI permite isso. Nesse século os circuitos internacionais para a comercialização das substâncias qualificadas como ilícitas, no mundo, precisam do Brasil como um entreposto e um centro consumidor. As novas tecnologias de informação e de produção permitem que os sistemas produtivos e de comercialização se internacionalizem numa rapidez desconhecida anteriormente. A rede de distribuição da pasta base de coca e da cocaína há anos utiliza o circuito amazônico para esse fim. Esta década mostra o uso da rota do Centro-Oeste para o mesmo objetivo. Porém, deixemos aos analistas da rede da coca e da cocaína essa análise.
Do caso histórico da economia agroindustrial da maconha
No caso da maconha, já vimos indicando em outras ocasiões como a produção da cannabis sativa no Brasil atende a um processo histórico de longa duração. Trazido para o País com os escravos africanos, ainda durante o século XVI, o cultivo de cânhamo foi importante como um experimento econômico. Previa-se atender ao mercado têxtil, em especial de cordoaria naval. Em várias regiões se implementaram fazendas de cânhamo, do Norte ao Sul (na edição atual do BDV há uma análise de Ana Gualberto sobre o cultivo de cânhamo na Feitoria Real do Cânhamo, atual São Leopoldo, RS). Por conseguinte, a presença de cânhamo e cannabis nada tinham que ver com controle social dos escravos. Ao contrário, pelo que transparece das informações existentes, até o cultivo de cânhamo representou uma possibilidade de ingresso econômico para os africanos e para os afrodescendentes escravizados no Brasil.
Na primeira metade do século XX, o pano de fundo da proibição do cultivo e do consumo de cannabis fez com que os circuitos econômicos existentes se sublimassem ao consumo recreativo, religioso e aos fins da medicina fitoterápica popular, em especial no Nordeste central e setentrional. Nos centros urbanos do Sudeste o consumo, se pode supor, era abastecido por pequenos carregamentos que vinham dessa região. Era um consumo, pelo que se depreende da literatura e das fontes existentes, marginalizado. Circulava nos círculos da malandragem, do samba e dos cultos das religiões de matriz africana. Era reprimido pelo Estado e tolerado socialmente em vários círculos, em especial nos círculos dos intelectuais desses centros urbanos.
Na segunda metade do século XX, a continuidade da proibição e sua internacionalização, em especial após à década de 1960, com as Convenções da ONU , a economia da maconha ficou ainda mais oculta. Porém, sua subordinação à lógica repressionista não implicou na eliminação dos usos (recreativo, fitoterápico popular e religioso). Além disso, com o crescimento da contracultura, como fenômeno urbano, o incremento do consumo entre setores das classes médias, em especial entre a juventude, fez crescer a demanda. Ao que parece, pelas indicações das publicações e dos periódicos jornalísticos, houve um incremento do ingresso de cannabis importada do México no período entre 1960-1970. Isso seguia uma onda de internacionalização desse circuito econômico, que dependeu ao menos de dois fatores. A Guerra do Vietnã e a entrada de setores econômicos estadounidenses no controle dessa atividade econômica. Vale notar que é esse o período no qual a economia da cocaína, na Colômbia, cresce, pelos mesmos motivos. A Ditadura Militar intensificou a repressão a esse ingresso de drogas no Brasil, porém a demanda pelo consumo permanecia. A isso foi devido o incremento da produção de cannabis, a partir desse período, na região do sertão nordestino.
Essa produção nordestina, nas décadas de 1970-1980 atendia ao abastecimento da região CentroSul, e ao próprio consumo do Nordeste. Isso dependeu da estruturação de um sistema produtivo que já possuía a base histórica da presença do cultivo e de seus usos na região. Além disso, agregou novas formas de produção – a produção irrigada, e as novas formas de controle da mãodeobra – cooptadas pelos ingressos econômicos muito acima daqueles das culturas lícitas regionais. Agreguese a isso um fator de ilicitude também presente em diversas áreas do Nordeste, os litígios interfamiliares, por motivos banais (defesa da honra) ou econômicos (disputas fundiárias). Ou seja, o cenário econômico endógeno que permitia o incremento da produção estava dado, ao que se agregava a existência de Grandes Projetos governamentais, como a construção de grandes hidrelétricas. Isso implicava na presença de intelectuais do CentroSul na região, dentre os quais saíram àqueles que criaram os circuitos de distribuição da produção.
Há uma economia da maconha que segundo Maia Gomes, do IPEA, agrega mais de 100 milhões de reais à economia regional de um conjunto de 30 municípios sertanejos de Pernambuco apenas. Não há nenhum estudo sobre o quantum dessa produção em termos mais abrangentes. A intensificação da repressão ao cultivo de cannabis nos anos de 1980 na região de Pernambuco e adjacências fazia crescer a produção em regiões centrais do Maranhão, e viceversa. Na verdade, não há maiores informações sobre o histórico da produção em outras regiões do Brasil e sua intensidade no abastecimento dos mercados locais e regionais. As informações sobre a década de 1990 indicaram um acirramento da repressão à produção em todo o território nacional, em especial no Nordeste.
Isso levou os gerentes do cultivo, em algumas cidades de Pernambuco, como Santa Maria da Boa Vista, por exemplo, a usarem duas estratégias para a cooptação de mãodeobra. Mantiveram a cooptação por meio do interesse econômico, o que parece ainda ser a via principal; e criaram a estratégia de cooptação violenta, com seqüestros de lavradores – o que parece ter até mesmo sido eliminado, com a inclusão de novas estratégias, como veremos adiante. A essa estratégia violenta correspondeu uma atitude de denúncia por parte das lideranças camponesas da região, em especial aquelas ligadas à histórica conquista do reassentamento de Itaparica. Uma das lideranças que muito se expuseram a essa defesa foi Fulgêncio Manoel da Silva. Por isso, os gerentes do cultivo encomendaram sua eliminação, aos 15 de outubro de 1997, que foi realizada por um rapaz de 17 anos, à época, de alcunha Tiquinho, que o alvejou com três tiros pelas costas, após uma emboscada, que o fez ir atender a um suposto telefonema do Movimento Nacional dos Atingidos por Barragem, do qual era fundador.
Essa crise local, no final da década de 1990 era um sinal das novas formas de enfrentamento e violência no campo, no Brasil, gerada pela repressão ao cultivo de maconha e pela organização ilícita dessa cadeia econômica. Passava-se de um processo produtivo, de integração de mãodeobra sem a pressão do atendimento à demanda, e sem as redes de corrupção necessárias ao ocultamento da produção, para essa nova modalidade. Ao mesmo tempo, a repressão implicava, necessariamente, no fenômeno da migração do crime e em sua flexibilidade, conforme indica a análise de Manuel Castells. Na medida em que se reprimia a atividade do cultivo na região, ela mudava de área, e naquela zona deixava as armas e novas modalidades de crimes contra as pessoas.
Os primeiros anos da primeira década do século XXI mostram a continuidade desse fenômeno com a inclusão de outro elemento. Além da migração regional da atividade, há também a agregação de mãodeobra por migração. Há informações, em especial da Pastoral dos Migrantes, que são trazidos do interior de São Paulo contingentes de lavradores para atuarem no plantio da maconha na região do Submédio São Francisco. O diâmetro da área de cultivo se expandiu, com informações que o levam desde o Sul da Bahia, aos estados do Amazonas e do Pará; e da ponta do Nordeste, do Leste em cidades como Juazeiro e Petrolina, ao Oeste como nas fronteiras de Capitán Baldo, no Paraguai. Aliás, sobre essa cidade se informa que há a presença de brasileiros indocumentados trabalhando na lavoura da maconha nessa cidade.
De alguns elementos que nos revelam as notícias que circularam no Boletim Drogas e Violência no Campo, de abril de 2005 até maio de 2007.
Vejamos agora alguns aspectos dessas notícias. Isso nos auxiliará no aprofundamento crítico desse fenômeno da economia das drogas e seus efeitos para a vida camponesa, bem como a identificar elementos necessários para uma política de drogas humanitária e justa, que vise o Bem Comum. Uma primeira observação deve se dar pelo conjunto de notícias diretamente vinculadas ao tema do cultivo de maconha no Brasil. Uma primeira observação se refere à baixa incidência de notícias sobre o fenômeno. De 112 notícias veiculadas sobre o fenômeno da violência no campo no Brasil e das relações delas com a economia das drogas, apenas 22 são diretamente referentes ao plantio da maconha (das quais uma é replicação, uma refere-se à questão indígena, outra ao reassentamento em terras expropriadas pela União devido ao plantio da maconha).
Essas notícias advêm de fontes governamentais (secretarias estaduais de segurança, ministérios, Agência Brasil, etc) e da grande mídia, disponíveis na internet, bem como de mídias locais (num total de mais de uma dezena de fontes). Há algumas notícias geradas pela equipe do programa TRD de KOINONIA com a assessoria do Núcleo de Comunicação. Portanto, este é um recorte limitado a tais fontes. Isso mostra uma relevância de abrangência, mas nem é concludente ou exaustivo o material que se possui nesse circuito. É com essa circunscrição e com esse limite que se precisa observar as notas que seguem. Seguramente, outras pesquisas poderão indicar mais informações detalhadas sobre o fenômeno em pauta. A partir dessas fontes, e observando exclusivamente as notícias sobre erradicações de áreas de cultivo de maconha (18) é que teceremos as reflexões seguintes.
Com essas informações há muitas reflexões possíveis de serem realizadas. Para o momento, nos concentraremos nos aspectos regionais e geográficos. Vamos identificar alguns aspectos socioeconômicos desses municípios citados e verificar o significado da economia do plantio de maconha nessas áreas. Todos os municípios pernambucanos citados são do sertão, próximos a área do, assim chamado, Polígono da Maconha. Os municípios baianos de Xique-Xique e de Campo Formoso estão nas imediações do Submédio São Francisco e fazem parte das antigas áreas de mineração. Juncos, no Maranhão, está próximo à região das aldeias dos Guajajara, na região central maranhense. O município de Parelhas, no Rio Grande do Norte é próximo da Paraíba, numa região de incomum relação com este plantio.
No caso da região norte, a novidade é a presença do Estado do Amazonas. O Estado do Pará tem a indicação de uma região na qual há uma certa constância do cultivo, por isso já recebeu o adjetivo de “Triângulo do Capim”, composto pelos municípios de ToméAçu, Concórdia do Pará e Acaré; além disso, falase do município de Xinguara, com uma pequena área de quatro hectares plantados. Nos estados da Região Norte, por conseguinte, há uma relativa novidade para o cultivo da maconha. Este deve atender tanto ao consumo da própria região, como deve abastecer o consumo do Nordeste, em ocasiões de alta repressão ao cultivo no Nordeste.
No caso do Centro-Oeste, temos a região paraguaia, vizinha, de Capitán Baldo, fronteiriça à cidade de Coronel Sapucaia. No Tocantins, é citada a cidade de Palmas. A operação da Secretaria Nacional AntiDrogas (SENAD) no Paraguai erradicou uma área de 2,5 mil hectares de cultivo de maconha. Isso significa uma operação conjunta dos governos paraguaio e brasileiro para a erradicação de áreas de plantio. Em Palmas, trata-se de um cultivo de pequena área, que pode, entretanto, compreender até 100 mil pés de maconha. O mais distintivo das duas regiões é que na de maior porte não se indica nenhuma detenção, enquanto que na última há uma pessoa detida.
É também interessante observar que as notícias indicam um trânsito geográfico do plantio. No ano de 2005 há duas notícias sobre cultivo. Uma, que não participa do quadro geral de notícias porque não se refere à erradicação de plantio, e sim da presença de cultivo ilícita em terras indígenas. As duas outras falam de áreas de cultivo nordestinas que foram erradicadas no RN e BA como observado anteriormente. Em relação às terras indígenas, tratase de uma notícia de 15 de maio de 2005, da Folha de São Paulo. Ela indica que há áreas no Nordeste, nos estados de PE, BA e MA; bem como no Norte, no estado do PA, nas quais há cultivo de maconha em reservas indígenas. Entre os Guajajara, no Lago Branco, MA, conforme a reportagem, o cultivo é para autoconsumo da comunidade indígena. Porém, entre os truká, em PE, a atividade seria de mera especulação econômica.
Em se considerando apenas as reportagens diretamente vinculadas às erradicações temos um trânsito que migra primeiramente no interior do Nordeste, deste para o Norte e finalmente atinge o CentroOeste. Porém, esse trânsito não é na verdade um processo de sucessões, talvez seja mais um processo cíclico. Além disso, apenas não temos notícias sobre a produção agrícola de maconha no Sudeste e no Sul, o que não implica na inexistência desse cultivo naquelas regiões. De qualquer maneira, o que fica apresentado pelas reportagens apresentadas no Boletim Drogas e Violência no Campo é que há esta atividade, ela é permanente, tem uma orientação regional, agrega mãodeobra, que passa a atuar numa atividade laboral de trabalho perigoso, que dentre outros fatores de periculosidade sofre a perseguição policial.
Neste sentido, uma notícia publicada por KOINONIA, aos 8 de março de 2006, sobre trabalhadores rurais que foram detidos em 16 de fevereiro, acusados de serem responsáveis por cultivo de maconha, é ilustrativa. Houve erradicação de uma área de cultivo na Ilha Baixinho de Cabrobó, em Pernambuco. Nesta ocasião a incursão da Polícia Militar levou a considerar suspeitos e a deter três trabalhadores rurais que estavam num barco pescando. Eles foram acusados porque pescavam próximo à área de cultivo. Nenhum dos requisitos para um flagrante estava presente. No entanto, foram detidos como “suspeitos em flagrante delito de cultivo de maconha”. A notícia ilustra que as incursões policiais nem sempre seguem os ritos da lei. Vinculado à atividade do plantio da maconha há uma permanente criminalização dos trabalhadores rurais que vivem em regiões do seu entorno, para além daqueles que dependem dessa economia específica.
Não há nenhum registro, nas notícias circulantes, de violência letal vinculada à atividade agrícola diretamente. Porém, também há notícia veiculada por Koinonia, que denuncia o assassinato de dois jovens, de 19 e 20 anos, em Belém do São Francisco (PE), por grupo de extermínio, que elimina pessoas que têm envolvimento com o cultivo de maconha. Muito embora os pais e familiares dos rapazes afirmem que nenhum deles esteve envolvido com essa atividade. Foram assassinados em agosto de 2005, e a notícia foi veiculada em 8 de março de 2006. Ao que parece, a imprensa não traz notícias de incidentes armados, de feridos ou mortos nas incursões policiais em áreas de cultivo de maconha, para incineração da produção. É como se tudo ocorresse pacificamente. Entrementes, os relatos que tivemos na pesquisa realizada para o Ministério da Justiça, numa atividade de pesquisa coordenada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) e Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), indicam que nessas incursões há mortes e ferimentos, sobretudo por parte dos trabalhadores rurais da colheita do plantio de maconha. Deixemos, entrementes, as discussões sobre os efeitos diretos para os trabalhadores rurais no cultivo da cannabis para outro momento.
Observe-se que a maioria das notícias refere-se à região Nordeste (13 entre 18), em que são citados quatro municípios baianos, dez pernambucanos e um maranhense. Todos os municípios pernambucanos são do sertão, exceto Afogados de Ingazeira. Na região Norte, é curioso que se indique uma produção de 200 mil pés no, assim chamado, Triângulo do Capim. Isso indicaria uma área entre 4 e 7 hectares de plantio, chegando a ser uma das maiores áreas de cultivo no Brasil. O total de área cultivada, a partir das notícias de apreensão, entre os anos de 2005 e 2007, encontra-se entre 33,7 a 50,7 hectares, se desconsiderarmos os 2,5 mil hectares de Capitán Baldo, no Paraguai, erradicados pela SENAD. O cultivo de Capitán Baldo com a utilização daquela área corresponderia a 75 milhões de pés, ou 22,5 toneladas de maconha prensada.
Estamos com a indicação ainda de outros elementos importantes. Do ponto de vista dos territórios, corresponde à territorialidade sertaneja atual a agroindústria irrigada, em especial da fruticultura. Não por um acaso muitas das áreas de cultivo de maconha no sertão se beneficiam das tecnologias de irrigação. Em segundo lugar, os fluxos de escoamento da produção também parecem depender de atravessadores, como no caso dos cultivos lícitos nessas regiões do Norte, Nordeste e CentroOeste. Finalmente, essas áreas nas quais ocorrem o plantio de maconha têm péssimos IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) no conjunto do País; ainda que não os menores, todos estão abaixo da média nacional. Ficam algumas questões a serem aprofundadas: como é a economia desses municípios? Como a cadeia produtiva da maconha se insere nesse contexto econômico? Como é a relação do cultivo da maconha com os diferentes biomas? Como é a questão do uso de novas tecnologias – por exemplo, se fala de maconha mentolada e transgênica produzida em Capitán Baldo – nesse cultivo ?
Considerações finais
Há ainda muitas indagações a serem elaboradas e muitas mais a serem respondidas. Porém, podemos tecer alguns comentários de caráter conclusivo. Como se pode perceber pelas notícias, anualmente se repetem as operações de erradicação do plantio. Verifica-se também que elas não se limitam a uma única região, e sim que cobrem uma grande área do território nacional. Ao que parece, a eficácia das operações de erradicação se comprovaria, por exemplo, pelas alterações no preço do varejo desse produto – a maconha – ou pela diminuição da demanda. Nenhum desses dois efeitos têm se evidenciado claramente. Além disso, deveria implicar numa redução da oferta de mãodeobra para a atividade de cultivo e do abandono de atividades de financiamento dos processos de produção agrícola, transporte e distribuição. Isso também parece que não tem ocorrido, uma vez que as operações do aparelho de repressão do Estado seguem ininterruptamente. Aliás, é indicado numa das reportagens divulgado pelo Boletim Drogas e Violência no Campo que as operações policiais não visam à erradicação definitiva do plantio da maconha, porque se lhe julga impossível.
Ao que parece os camponeses que se dedicam a essa atividade agrícola são as pessoas mais negativamente afetadas pela política proibicionista da erradicação. Eles se transformam em mãodeobra subterrânea, migrante e criminalizada. Mais ainda, os camponeses que vivem nas mesmas regiões em que ocorre o cultivo da maconha são criminalizados por contaminação da presença do cultivo. Regiões passam a ser identificadas com a atividade que é tornada ilícita, e passam a ser caracterizadas por essa inserção econômica, como o caso do Polígono da Maconha, no Nordeste, do Triângulo do Capim, no Norte e da fronteira com o Paraguai, no CentroOeste. Essa identificação passa a ser um elemento de desqualificação das regiões.
Poderia haver uma outra política de drogas, capaz de desvulnerabilizar essas populações e essas regiões? A atual política de drogas do Estado brasileiro, com a nova lei de drogas, não oferece nenhuma alternativa a esses camponeses. Para eles há as barras da lei. Se o camponês é o proprietário em terras em que há o cultivo, independente do período histórico no qual o cultivo existe, independente da forma de ingresso na atividade, a ele resta a expropriação de sua terra. Na verdade, pela primeira vez, houve uma iniciativa de expropriação com reassentamento, pelo Estado brasileiro, que implicou em utilizar 7.458,33 hectares para o reassentamento de 233 famílias (notícia veiculada no Boletim Drogas e Violência no Campo). Corresponderão esses reassentamentos na redução desses hectares para o cultivo da maconha? Corresponderão esses hectares a mais justiça para as camponesas e camponeses que vivem em regiões nas quais ocorre o cultivo da cannabis? Talvez, já se tenha passado da hora do debate público sobre esse tema e as conseqüências da política proibicionista no campo e na cidade.